número 44 (1-2) / 2004
A ANTROPOLOGIA
à memória de Abel Salazar pela união da arte e da ciência do outro lado do corredor um rosto de índio iluminou-se. vi-lhe as feições com nitidez e perguntei qual a sua etnia. notei depois, à medida que se aproximava, que pertencia a um corpo, inteiro e em movimento; e transportava alguns objectos, tal como essas figuras animadas que nas vitrinas dos museus ilustram modos de vida. e perguntei-lhe qual a sua tribo, se o que trazia era para vender, como tinha conseguido penetrar na minha casa em silêncio, e aproximar-se de mim assim tão subtilmente. mas quando a sua cara (exalando tons de tintas, de óleos berrantes, de unguentos escorregadios com que se tinha besuntado) chegou tão perto que quase tocou a minha, vi por detrás dela, como numa fotografia, um fundo de estantes com seus livros alinhados. é a biblioteca de antropologia, pensei, o saber em que nós, ocidentais, arrumámos a humanidade inteira, umas vezes por ordem alfabética, outras vezes por graus de complexidade, em geral do mais selvagem para o requintado. estão aqui registados em ficheiros infinitos todos os dados que se reportam a comunidades extintas, cada uma com seu nome, tempo e região: as cores de pele, a forma dos cabelos, as tatuagens e poses com que, numa moldura de plantas e lianas, ou sobre um quadro de planícies a perder de vista, nos olham desamparados, com uma expressão que se tornou ambígua, opaca ao nosso entendimento, própria do rosto de todos os retratados, e portanto dos que já habitam o limbo entre a vida e a morte; mas talvez também porque foram apanhados ainda em plena vida no gesto jamais feito, jamais preparado para ficar assim; e agora, na desfocagem da sua fisionomia, denunciam o estertor dos que passam de pessoas - ou seja, realidades vibráteis - a objectos de observação científica, parados para a contemplação do nosso olhar. esses arquivos, dantes, ainda tinham os cheiros ultramarinos que traíam as suas diversas proveniências; flores secas, pássaros captados no voo, objectos de toda a sorte encarcerados na claustrofobia de vitrinas, cadernos de campo cheios de notas sobrepostas, cartas recebidas da civilização, com selos e carimbos antigos de Paris, Londres ou Berlim. e à noite, nos museus, os guardas suspeitavam que os silêncios das salas eram atravessados por sons de floresta, por sussuros de saudade, por passos de alguém que, cansado da sua etiqueta (de aborígene, de ameríndio, de homo sapiens qualquer coisa, de especialista já desaparecido, de esposa de antropólogo esperando numa estação, de entomologista debruçado no seu gabinete cheio de odores químicos), e iludindo a vigilância, se dirigia para outra secção, baralhando assim as nomenclaturas, as taxonomias, todo o esforço de gerações de missionários, de viajantes, de coleccionadores, de aventureiros, de sábios, que se desprenderam de tudo para, como dizem os seus diplomas, ou as suas entradas de enciclopédia, partir para longe e trazer novidades. Hoje não há perigo de perda ou fuga possível: está tudo (pelo menos na nossa imaginação ou desejo) desinfectado, asséptico, bem organizado em gavetas polidas, em bases de dados interactivas, em imagens animadas que vêm como assomos súbitos à janela dos computadores. é como se pudéssemos puxar ao écrã da actualidade todos os que morreram, e jazem fotografados de frente e de perfil - um imenso cadastro, uma incomensurável morgue. e pô-la ao dispor de todos, crianças e estudiosos, citadinos e habitantes que, da mais remota aldeia, podem agora felizes aceder à rede que também os envolve. até a vida que andava por aí, desorganizada, leviana, está lá apanhada completamente, pelo que tudo o que ocorre, já ocorre porque há rede, que é o alfa e o omega do nosso tempo. assim, para a forma de saber totalitário em que vivemos, que respiramos, que cada dia reforçamos, o sábio já o era a partir do primeiro escrito de infância; e o amante ardoroso interrompera a acção quando ia consumar o beijo, para se dirigir ao funeral da amada, uma vida depois. Assim tudo é limpo, correcto, cada um faz o que deve ser, não há descriminações, as etnias de toda a terra estão organizadas por ordem alfabética, temática, geográfica, cronológica, segundo as suas coordenadas precisas. e sorriem, cada uma no seu pavilhão da grande exposição universial em que o mundo se transformou. nada está fora do previsto, a não ser talvez tu próprio, índio, que me visitas ao fundo da escuridão do corredor, e para mim vais crescendo com uma expressão indecifrável. se voltaste para recuperar as máscaras que coleccionei, leva-as; excepto uma, claro, a mais evanescente de todas, e que uso como rosto próprio. há uma varanda nas traseiras com caramanchão, onde poderemos falar da relatividade das culturas, no meio de cactos, tucanos, plantas e aves raras aqui. e recordar tempos d'outrora, fumar com a elegância de príncipes da selva, apresentar argumentos fortes, com o vigor do pau-santo, sentados sobre "chaises-longues", enquanto contemplamos os voos das araras. servir-te-ei um chá que já não encontras em parte alguma, um odor asiático, milagroso. porém, se possível, não me olhes tão fixamente. rompe o silêncio, que é a mais cruel das encenações. eu prometo, à vista da Lisboa de quinhentos, que Lisboa ainda é, com a sua azáfama portuária e todas as ruas a descer para o Tejo, aqui, à sombra desta palmeira centenária, entre quadros maravilhosos onde o tempo se fixou aprender contigo antropologia - essa ciência e essa arte de nos deixarmos ainda espantar com o mais trivial gesto, a mais fugaz expressão, sobre um mosaico horizontal de remorsos e de feridas incuráveis, que se estende, como num quadro de Dali, até ao horizonte imaginável. porque só com a diversidade do humano, o carácter sempre inesperado dos dias, mesmo que persistentemente ausentes ou recalcados, as abóboras, as volutas, as colunas das árvores, os arcos lançados ousadamente para os firmamentos da geometria, ganham sentido - ou seja, alcançam um ponto de interrogação. espero que isso que a faca que transportas à frente do teu olhar fixo traga a estética "etno" dos desenhos incisos no seu cabo, e não, ao contrário, a frieza vingativa, brônzea, do gume: a que, pelo verdete do golpe, concede ao corpo atingido a verde cor do desfalecimento. Porto, Fevereiro de 2004 Vítor Oliveira Jorge |
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Preâmbulo Intencionalidade, linguagem e valores. Contributos interdisciplinares para a questão da universalidade e da diversidade da moral Marina Prieto Afonso Lencastre As etno-paisagens. A observação etnogeográfica das formas sociais de modelagem do espaço Armindo dos Santos Características contextuais da prostituição de rua e do trabalho sexual de interior Alexandra Oliveira Antiguidades orientais e conflitos internacionais: (a propósito de) um episódio português em plena 1.ª Grande Guerra Mundial Ana Cristina Martins Uma proposta para reconceptualizar a materialidade arqueológica: o Campaniforme no Norte de Portugal e regiões fronteiras (melhor qualidade) João R. P. Rebuge Prácticas de construção e reprodução de poder no Portugal rural do século XVII ao século XIX. O caso do morgadio de Peroviseu e Chãos (Fundão) Judite Maria Nunes Esteves V Á R I A RECENSÃO de "A irrequietude das Pedras, Reflexões e experiências de um arqueólogo" João Muralha Pierre Lemonnier no Porto |