número 38 (3-4) / 1998
Como é sabido, a SPAE foi fundada em 26 de Dezembro de 1918, dia em que se realizou uma Assembleia Geral que aprovou os Estatutos da associação (vigentes até aos meados dos anos 80). A primeira reunião da Sociedade efectuou-se no dia 21 de Janeiro de 1919. Faziam então parte do "Conselho Director" da SPAE, como se chamava, Luís Viegas (Presidente), Bento Carqueja (Vice-Presidente), Mendes Corrêa, José da Rocha Ferreira e Abel Salazar.
É também do conhecimento geral que Mendes Corrêa foi o grande impulsio-nador da Sociedade, com a colaboração dos já citados Luís Viegas e José da Rocha Ferreira, além de Aarão F. Lacerda. Todos eles eram homens com formação na área das "ciências", fossem elas a medicina (Luís Viegas, Abel Salazar, Mendes Corrêa), ou as ciências "naturais" (zoologia, mineralogia, paleontologia, agronomia - Aarão de Lacerda, Rocha Ferreira, Bento Carque-ja), independentemente da carreira universitária que cada um prosseguiu e das orientações culturais ou ideológicas que os animavam. A primeira Faculdade de Letras do Porto, recorde-se, só viria a ter existência um ano depois (1919), tendo funcionado até 1931, para apenas reabrir, após ter sido extinta, 1961. Há 80 anos, os objectivos da SPAE eram ambiciosos: "estimular e cultivar em Portugal o estudo dos métodos antropológicos, da antropologia zooló-gica, antropologia étnica, antropologia e arqueologia pré-históricas, psico-logia experimental, etnografia, e dos ramos científicos seus derivados ou aplicados, como as antropologias militar, pedagógica, clínica, criminal, judi-ciária, etc.". Está porém por traçar, de forma actualizada, crítica, aprofun-dada e desenvolvida, uma história cultural do Porto e do país dos inícios do século, que explique o advento de instituições como a SPAE, com o espírito que nelas se vivia, e com os fins programáticos que tinham. No entanto, nos objectivos acima enunciados está todo um "retrato" de como se concebia a antropologia nos inícios do século, e de como ela era considerada básica, não só à definição da "essência" da "nação", como, mais pragmaticamente, à tomada de decisões em muitos domínios da vida prática, incluindo a elucidação de questões judiciárias. Seja como for, a revista que o leitor tem na mão, com o seu vol. 38, que se conclui no presente tomo (fascs. 3-4), perfaz 80 anos de existência, como órgão de difusão científica ligado à actividade da Sociedade. Teve, no início da sua vida (desde 1919), uma designação um pouco diferente ("Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia", até ao vol. X, ou seja, até 1945), e certamente passou por matizes variados no que ao seu conteú-do respeita, o que não é nosso objectivo abordar aqui. Interessa-nos apenas acentuar que não é habitual uma publicação periódica portuguesa, de natu-reza científica, e produzida por uma (relativamente pequena) associação (sobretudo carenciada de uma sede condigna), atingir um tal grau de conti-nuidade. Os "T.A.E." são neste momento um importante património, que nos cabe gerir da melhor forma, ajustando-o às necessidades do presente e de uma vasta gama de potenciais utilizadores (sejam eles leitores, ou autores). O que mais desejamos é que quem lê esta revista se sinta estimulado a escrever para ela - um artigo de fundo, uma simples notícia, uma recensão crítica, um comentário, etc. Cremos que foi correcta a opção da actual direcção de a orientar no sentido de se tornar uma revista inter e transdisciplinar de ciências sociais e humanas, com uma perspectiva genericamente mais interpretativa, proble-matizante e abrangente, do que descritiva, especializada e técnica. Tem-nos, aliás, permitido um diálogo extremamente interessante com um naipe crescente de autores; potencia-se como um ponto de encontro de formações e de saberes diversificados, podendo atingir um maior número de leitores; projecta a SPAE para fora de si mesma, sobretudo a partir do momento - Janeiro deste ano - em que passou a poder encontrar-se nas principais livrarias, graças a ter um distribuidor nacional. Distanciou-se, assim, de uma situação para que poderia eventualmente vir a resvalar, a de ser quase um "boletim" para distribuir aos sócios (que, estatutariamente, têm direito a recebê-la), para se afirmar como uma publicação que vai adquirindo presença significativa no contexto cultural português. À medida que essa "presença" for aumentando, como esperamos, até mesmo os trabalhos de antropologia ou de arqueologia que aqui se publi-carem (na linha da tradição da revista), poderão aceder a um circuito alar-gado de leituras e de debates que só os valorização, dando-lhes uma visibi-lidade diferente da que teriam se se dirigissem apenas a um auditório específico. E, não "concorrendo" com revistas mais especializadas de antro-pologia, que felizmente vão crescendo em número no nosso país, os "T.A.E." podem, apesar de tudo, guardar algo dessa sua matriz original, correspon-dendo a um momento em que a antropologia, não tanto como prática, nem ainda como conjunto de problemáticas, mas mais como um modo de ver, é uma focagem inspiradora para muitos autores da área das convencional-mente chamadas "ciências sociais e humanas". Estamos numa época em que as "sociétés savantes" herdadas do passado correm o risco de anquilosar-se e de fechar-se sobre si mesmas, até finalmente se extinguirem, devido ao desaparecimento progressivo do espírito que incialmente as animara (as de pequenas elites de "sábios", unidas por um código fechado e por interesses de "classe", no sentido tradi-cional do termo), descabido no mundo contemporâneo, onde a partilha de poderes e de saberes passa por uma teia muito mais complexa e subtil de produção das "distinções" entre os cidadãos. Época que, por outro lado, e em muitos aspectos, não propicia o desen-volvimento de uma "cultura de cidadania" que o associativismo exige, e que é difícil de medrar no contexto das nossas grandes metrópoles, mais incli-nadas para um certo cosmopolitismo egocentrista. Todos bem sabemos como as pessoas deixaram de ter centros de refe-rência, que própria "cidade", com os seus símbolos emblemáticos, arquitec-tónico-espaciais, tradicionalmente implicava; vivem desgarradas em perife-rias incaracterísticas, enervando-se em filas de tráfico, interpondo grava-dores de mensagens entre si e os outros; não têm tempo nem espaço para se encontrarem; mesmo quando são criativas, estão cansadas de investir na "coisa pública" de que profundamente (e às vezes com fundadas razões) descrêem. Preferem assim passar os seus "momentos livres" a olhar para monitores (sejam eles de televisão ou de computadores) e, ultimamente, a tentarem "comunicar" com interlocutores abstactos, via Internet, numa euforia que pode ter algo de suspeito, no sentido de que mal disfarça uma certa frustação inerente a tal actividade, que, se praticada obsessivamente, elimina o hábito e o tempo necessários ao "mergulho" da leitura e da refle-xão. Sem esquecer que os que têm acesso à Internet são ainda uma minoria... De facto, quando a comunicação perde a sua componente afectiva, convivaial, produzida em comum, e rica de mensagens, para se cingir à transmissão diferida de "informação", não cria comunidade alguma, nem produz, em si mesma, nada de verdadeiramente significativo. Quem escreve isto é também um utilizador da Internet, do fax, do telemóvel, de todas as técnicas de comunicação ao seu alcance, incluindo a publicação tradicional - mas apenas como instrumentos, ou veículos, ou "portas finais de saída" (entre outras) de uma actividade que se pretende "criativa", e que tem de se continuar a tentar fazer noutros tempos e lugares, não apenas, nem sobretudo, na lufa-lufa da transmissão ou da recepção de "mensagens". A este respeito - e outros - é muito interessante a leitura do livro recente de Ignacio Ramonet, "Géopolitique du Caos" (Paris, Galilée, 1997). A ideia de "comunicar" sem antes se pensar tem contornos assutadores. Como é também preocupanete a ilusão de que a utilização dos computadores, da informática ou dos multimedia podem, por si sós, ser o sustentáculo de qualquer sistema ou de qualquer cultura, a não ser a cultura opressiva da globalização, a que Ramonet se refere. Mas, não há dúvida de que a próxi-ma fusão entre o telefone, o televisor e o computador irão condicionar profundamente a nossa ecologia mental. Entretanto, todos sabemos como é fatigante a permanente deambu-lação, a multiplicação de cenários sem sentido, que nos afasta dos nossos livros, das nossas memórias, das nossas referências, do silêncio indispen-sável para poder ouvir música ou ler um livro, e, sobretudo, de uma inesti-mável, que é a disponibilidade de estarmos com os outros, o espaço-tempo em que abrimos a porta à visita inesperada de um amigo, e sentimos, por isso, que "ganhámos" o dia, ou ainda a semana, ou o mês. Cada um de nós sobraça hoje, em viagem, o seu computador portátil, numa tentativa quase caricata de encontrar um canto e um momento para prosseguir um trabalho, na ilusão de transportar ali a sua "obra" em construção; mas, muitas vezes, não chega a haver ocasião de o utilizar, ou condições para dele tirar qualquer partido. E, assim, é por vezes um objecto tão inútil como os computadores dos gabinetes de alguns pol+iticos, computadores esses que devem ser das primeiras peças com que estes os decoram. E invejamos francamente aqueles que dizem que se habituaram a trabalhar em aeroportos e em aviões... mas, poderá produzir-se algo de interessante em tais condições? Todos temos telemóvel, quase transformado, como o relógio, numa prótese. E para que é que, a maior parte das vezes, nos serve tudo isso? Para reforçar a nossa autonomia, a nossa liberdade, a nossa disponibi-lidade? Ou para sermos permanentemente interrompidos, produzindo nos nossos interlocutores próximos cortes de conversação que têm um efeito psicológico e simbólico semelhante aos dos telefonemas que os políticos e os executivos atendem (pedidno amavelmente desculpa), durante as entre-vistas em que nos recebem? Essas "interrupções" servem afinal para subli-nhar que nós, apesar de estarmos a ser "atendidos", somos apenas um minúsculo elemento de uma vasta rede de contactos que o "poder" entre-tece, e que o assunto de que estamos a tratar, para nós eventualmente capital, é apenas um dos muitos "itens" com que o interlocutor tem de se preocupar, situado como está numa esfera de actuação muito acima da nossa. A emoção, a urgência, a afectividade com que um ser humano vivencia os assuntos a que se dedica, são assim desviadas, porque incómo-das, subversidas, exigindo-se uma linguagem quase maquinal, a mesma que os moderadores dos debates (televisivos ou não) com impaciência impõem a um elemento do "público" a quem foi "dada a palavra": "mas qual é afinal a pergunta?"; "temos mais espectadores que querem intervir"; "esse ponto é interessante, mas o tempo força-nos a interromper"; etc. Este tipo de opressão simbólica, com todo o aparato tecnológico de que se rodeia (para a qual estamos hoje particularmente acordados, em termos de sensibilidade) exclui liminarmente a maior parte da experiência humana e das soluções verdadeiramente inovadoras que se poderiam inventar (porque essa invenção só se produz num contexto de liberdade e de espontaneidade comunicativa, o que pressuporia o nivelamento simbólico dos participantes, e, sobretudo, implica um vector tempo que é sistemati-camente eliminado). Lamina, a priori, toda e qualquer veleidade da maior parte das pessoas - mesmo quando assistem a um debate - falarem em público. É um sistema de dominação sub-reptícia em que os meios de produção do discurso são inteiramente controlados por uma máquina subtil, tanto mais hipócrita quanto convida as pessoas ao diálogo, estabele-cendo condições psicológicas e culturais (códigos, todo um dispositivo retórico, que não é só linguístico, mas gestual, arquitectónico, etc.) em que a maior parte do auditório fica automaticamente reduzida ao silêncio. Através de mecanismos de inibição habilmente gerados e geridos pelos controla-dores das diversas "arenas sociais", as pessoas são amputadas da sua capacidade de "performance", essencial à sua constituição como actores sociais de pleno direito, para serem reduzidas a simples figurantes, especta-dores de um jogo em que não podem tomar parte. Nós gostaríamos que os "T.A.E.", oitenta anos passados sobre a sua criação, fossem, de facto, não uma arena de poder simbólico de uma meia dúzia de autores que neles colaboram já, mas um verdadeiro pretexto de comunicação entre um cada vez mais alargado conjunto de pessoas. E apraz-nos registar, neste tomo, a participação de todo um novo leque de autores, que muito prezamos. Mas queremos que, de futuro, esse leque se abra mais. Aos muitos colegas que reiteradamente convidámos a colaborarem nestas páginas, e ainda não o puderam fazer, aqui fica o desafio. Que, não se esqueçam, é também, e sempre, dirigido aos antropólogos e aos arqueólogos. Porto, Janeiro de 1998 Vítor Oliveira Jorge |
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Preâmbulo Homenagem a Marie-Louise Bastin Vítor Oliveira Jorge As Origens do Silêncio. Sobre o que não sabemos Levi António Malho A Vida, o Homem e a Máquina Maria Manuel Araújo Jorge Darwinismo, consciência e cultura. Considerações teóricas e epistemológicas sobre a Bioantropologia Marina Prieto Afonso Lencastre O real como ficção Álvaro Campelo A cidade, o subúrbio e o resto. A terra Alexandre Alves Costa A história da arte portuguesa no âmbito da história-ciência: metodologia, prática e destino Vítor Serrão O património e o futuro Alexandre Alves Costa A Antropologia que a democracia produziu João de Pina Cabral Surrealismo e etnografia. Relações antigas, debates actuais Tiago Neves Das fronteiras medievais à fronteiras historiográficas: liminaridade transgressão; obesidade Rui Cunha Martins O lugar da ética em Peirce Alexandra Abranches O "espanholismo" de Manet Bernardo Pinto de Almeida V Á R I A Recensão H. G. de Araújo Mesa-redonda sobre "A Arqueologia portuguesa na intersecção dos outros 'patrimónios': balanço dos anos 90 e perspectivas para o séc. XXI" V. O. Jorge, C. Torres Prof. Jean Guilaine, do Collège de France, no Porto V. O. Jorge Missão da Prof.ª Angelina Peralva V. O. Jorge ADECAP organiza 3.º Congresso de Arqueologia Peninsular (1999) V. O. Jorge, A. Moure Romanillo Call for papers - "Journal of Iberian Archaeology" International Rock-Art Congress/Congresso Internacional de Arte Rupestre (UTAD, Set. 1998) TAE - Sumários dos vols. 36 a 38 (1996-1998) |