número 36 / 1996
Este vol. XXXVI dos "Trabalhos de Antropologia e Etnologia" representa, segundo esperamos, um novo ponto de viragem na nossa revista.
Após a já histórica renovação processada na vida da SPAE em 1985, quando herdámos o longo período de liderança do Prof. Doutor Santos Júnior, o TAE passaram, até ao final dessa década, por uma fase de tran-sição, compreensivelmente algo indefinida, inserindo alguns trabalhos de Arqueologia e de Etnografia, até que em 1990 se decidiu dar um novo impulso a esta publicação, afinal o mais importante elo de ligação entre todos os sócios da SPAE, entre esta e outras agremiações congéneres, e uma das principais razões de ser da nossa instituição. Foi então que no triénio 1990-93 se editaram os três volumes de homenagem ao etnólogo Ernesto Veiga de Oliveira, falecido nos inícios do ano de 1990, e sócio honorário da SPAE. Conseguiram-se assim alguns origi-nais de valor, principalmente no campo em que ultimamente vem sendo mais difícil a actuação da Sociedade, por estranho que pareça: o da Antro-pologia cultural ou social. A verdade é que o "movimento renovador" de 1985 havia sido efectuado maioritariamente por arqueólogos, e que, por outro lado, tem sido difícil romper o isolamento da SPAE no ambiente antro-pológico português, devido a razões históricas bem conhecidas de todos, e que fazem com que se concentre no meio universitário lisboeta a maior parte dos especialistas (sem menosprezo, por ex., da "escola" de Coimbra, de grande qualidade). No triénio seguinte - 1993-95 - abalançámo-nos à mais ousada das inicia-tivas da Sociedade, talvez desde o momento da sua criação, em 1918. Concebemos e realizámos, na academia portuense, e de colaboração com dois colegas da Universidade de Alcalá de Henares, o 1.º Congresso de Arqueologia Peninsular, precisamente por uma absoluta descoordenação dos serviços do Estado neste sector. Descoordenação essa que culminou na respectiva actuação, que tão bem se conhece, no "caso Côa". Sentimo-nos satisfeitos por esse Congresso ter sido um êxito, e por estarem já distribuídas as suas 4.500 páginas de Actas, no momento em que se ultimam os preparativos do 2.º Congresso em Zamora, para Setembro deste ano. E não menos pelo facto do "Dossier Côa", separata do vol. VIII das referidas Actas, com 600 páginas, ter já esgotado, neste momento, os seus 750 exemplares. Encontra-se espalhado por todo o mundo e, graças ao seu significado histórico e à qualidade dos seus colaboradores, a sua publicação é sem dúvida um marco importante da vida da SPAE, mostrando como uma pequena entidade particular pode ter um papel interventor, público, extre-mamente importante nos momentos adequados. Acalentamos a esperança de que o início da reorganização da Arqueo-logia, tornando possível a partir dos finais de 1995, permita que agora se dê, neste algo obscurecido domínio, corroído por variadas "doenças" que não é propósito deste preâmbulo diagnosticar, um verdadeiro "25 de Abril" pací-fico e decidido, apesar de todas as resistências inevitáveis. Nesse processo, espera-se, hão-de colaborar activamente entidades representativas dos vários sectores da sociedade portuguesa, e particularmente do meio arqueológico nacional, como a Associação dos Arqueólogos Portugueses, a Associação Profissional de Arqueólogos, a Comissão Inter-Universitária de Arqueologia do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, a Arqueonáutica, a Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, etc. Impõe-se, afinal, que os serviços do Estado adquiram a qualidade e o rigor que a disciplina passou a conhecer nas Universidades a partir dos meados dos anos 70, quando toda uma nova geração de docentes-investigadores nelas entrou. Não parece ser vocação prioritária da SPAE intervir agora nesse quadro, podendo, no tirénio que se inicia, deslocar o seu eixo principal de actividade, se não científica, pelo menos de intervenção cultural, da Arqueologia (componente sobrevalorizada pelo "mega-congresso" de 93), para a Antro-pologia Cultural. Foi pelo menos esse o objectivo com que os actuais órgãos sociais se apresentaram às eleições de Maio último, recebendo para o efeito um mandato inequívoco. Gostaríamos que este primeiro número do novo triénio dos TAE reflectisse já, tanto quanto possível, essa nova orientação, e que ela se acen-tuasse nos volumes de 1997 e de 1998. Tal só será possível com a colabo-ração de colegas da área da Antropologia, portugueses e estrangeiros, a quem desde já fazemos um apelo no sentido de nos enviarem originais para publicação nos próximos dois anos. Em vez de trabalhos técnicos, só interessantes para especialistas, e portanto, mau grado a sua importância intrínseca, necessariamente limita-dores do nosso público leitor e da inserção social das nossas iniciativas editoriais, importa estudos e ensaios abertos às grandes questões contem-porâneas, mesmo que as problematizem a partir de análises casuais espe-cíficas. Trabalhos no interface da antropologia e da história, da antropologia e da psicologia, da antropologia e da sociologia, da antropologia e da filoso-fia, da antropologia e da arqueologia, etc., capazes de avivar o interesse pelo debate inter e transdisciplinar, eis os que mais nos importariam. Certas incursões anteriores da SPAE nesse âmbito mostram bem o "nicho" inexplorado de actuação positiva que aí se encontra, sobretudo no Norte do país. O êxito do Colóquio de Antropologia Social, que encheu por completo o auditório da Reitoria da Universidade do Porto, em 1989; a mesa-redonda subordinada ao provocatório tema "Existe uma Cultura Portuguesa?", efectuada em 1992, e cujo livro resultante, publicado pela "Afrontamento", já se encontra esgotado; e a realização, em colaboração com a Associação Portuguesa de Antropologia, do ciclo de palestras sob o título "Trabalhos e Perspectivas Recentes da Antropologia Portuguesa", em 1994/95 - são indícios claros de que este é um caminho importante a pros-seguir, e que poderia eventualmente desembocar numa iniciativa de relevo no final do século, em que a SPAE aparecesse associada a outras entidades igualmente empenhadas, se para tanto vierem a apresentar-se condições favoráveis. Somos dos que continuam a pensar que o associativismo cultural tem um papel fundamental - até de natureza ética - a desempenhar numa socie-dade democrática, onde é preciso trabalhar para aprofundar o diálogo, sobretudo num meio de fragmentação de valores, de fuga em frente para comportamentos de "evasão" (droga, fundamentalismo religioso, intransi-gência para com as diferenças, violência, xenofobia), de retracção dos indiví-duos sobre os seus desígnios egoístas, de desvario narcisista, sempre compensatório de graves lacunas afectivas, como aquele a que assistimos, e de que afinal todos acabamos por participar, no movimento pendular do stress entre a ansiedade e a depressão. Ora, o diálogo entre os seres humanos de culturas diferentes é um património inegável da Antropologia. E a SPAE, como a mais antiga associação antropológica do país, não pode nunca esquecer isso, tanto nas suas actividades como nas publicações a que aquelas vão dando origem. O que importa é endogeneizar, trazer para o próprio interior da comunidade universitária e cultural, essa atitude de diálogo, que é sempre uma predis-posição para o esforço do despaisamento e da aprendizagem, e o absoluto oposto da arrogância dos que, no seu discurso monologante, julgam poder sobrevoar tudo e todos. Como se alguém pudesse ser "a consciência da nação", falando de fora e de cima do tablado da acção concreta, em nome do suposto "interesse geral", sempre um artifício retórico para impor aos outros, como indiscutíveis, objectivos sectoriais. Uma parte dos nossos "formadores de opinião", que escrevem regular-mente nos jornais, pertence, talvez, a essa classe de "videntes", que substi-tuem ao desconforto da intervenção no terreno a cristalina resolução dos problemas "in vitro", efectuada na domestificidade dos seus gabinetes. Mas, como é óbvio, nunca poderemos passar sem eles, são um sintoma imprescindível de democracia, e só é pena que não haja mais, para enri-quecer o nosso (frequentemente) cinzento quatidiano. Veja-se o que aconteceu no caso Côa: para além dos interesses económicos e políticos em causa, o que aí se defrontou, basicamente, foram duas atitudes culturais e éticas (perdoe-se-nos o maniqueísmo deste esquema redutor). De um lado, o daqueles para quem o mundo é uma máquina que se presta a todas as experiências (com o seu séquito de bajuladores e de oportunistas). De outro lado, o daqueles que ainda acreditam na discussão livre de valores e na capacidade colectiva para os tentar implementar na realidade, não pelo autoritarismo e pelo achinca-lhamento do outro, mas pela persuasão argumentativa. E que estão dispos-tos a perder, a arriscar, em função desses valores (sempre evidentemente discutíveis), e a não aceitar, como irreversível, toda e qualquer decisão que o poderes políticos e económicos se arroguem o direito de impor. É aqui que passa a verdadeira linha de fractura entre dois sectores da nossa sociedade, entre os dois lados da barricada em que o "caso Côa" a todos (quer quiséssemos, quer não) nos posicionou. Revertendo agora, para rematar, ao tema que motivou este preâmbulo, informamos que até aos fins de 1996 será lançado, de novo pela "Afron-tamento" (e na mesmo colecção do anterior), o livro resultante daquele ciclo de palestras organizado pela SPAE e pela APA. Aproveitamos para solicitar a todos os conferencistas que não chegaram a remeter-nos os seus originais para o livro, que o façam agora, tendo como destino os TAE. Como se pode ver neste volume, criámos um Conselho Redactorial constituído por nomes prestigiados das nossas Antropologia e Arqueologia, e por alguns elementos da direcção da SPAE. A tal Conselho agradecemos a ajuda que nos presta no sentido de tentarmos fazer dos TAE uma revista agradável de ler, estimu-lante, inteligente, que possa chegar a um público que ultrapasse os nossos sócios e os que já trabalham nestes "métiers". E, já agora que falamos de sócios da SPAE (que ainda são, na sua maioria, arqueólogos), permitimo-nos sugerir-lhes que colaborem com a nossa revista (lendo-a, divulgando-a, enviando para ela comentários, notí-cias, trabalhos numa perspectiva interdisciplinar). Cremos que um dos modos fundamentais de afirmação da Arqueologia na nossa sociedade é que ela se apresente cada vez mais, para o exterior, não apenas como um saber especializado, ou como um conjunto de técnicas que são do domínio de alguns, mas como um leque de problemáticas que, ao seu modo próprio, reencontram as grandes questões da contemporaneidade. Só assim, entron-cando com as restantes ciências sociais e humanas, a Arqueologia sairá do ghetto em que muitos parece estarem interessados em a manter, folclo-rizada e culturalmente inoperante, para se afirmar à luz do dia, como uma ciência, como uma profissão, como um serviço público, mas também como um modo de olhar o real, sem exclusões, sem complexos, nem quezílias. É tempo de irmos ao mais importante. Lisboa, Junho de 1996 Vítor Oliveira Jorge Presidente da Direcção da SPAE; Prof. cat.º da FLUP; Pres. da Comissão Instaladora do Instituto Português de Arqueologia |
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Preâmbulo A Antropologia Pós-Moderna Paulo Castro Seixas Pós-modernidade e desordem - A toxicodependência como sintoma Helena Cabeçadas Ruínas/notícia da Arcádia Atlântica António Medeiros Yo soy hombre y mando: tu eres mujer y callas. La inferioridad de la mujer es socialmente construida en la infancia Raúl Iturra O durkheimeanismo hoje: classificações, hierarquias, ambiguidades Manuel João Ramos Dumézil, as Matralia e as Quatro Estações Francisco Vaz da Silva Para uma abordagem interdisciplinar e transcultural das toxicodependências Helena Cabeçadas Regresso ao Vale do Côa Monteiro Pinho Arqueologia portuguesa no séc. XX: alguns tópicos para um balanço Vítor Oliveira Jorge e Susana Oliveira Jorge Women in Portuguese archaeology Vìtor Oliveira Jorge & Susana Oliveira Jorge Mythe et magie dans l'art parietal: la logique de la caverne A. B. Vieira Regional diversity in the Iberian Bronze Age - on the visibility and opacity of the archaeological record Susana Oliveira Jorge V Á R I A Colóquio "Artes da Fala" Ana Teresa Sousa II.º Congreso de Arqueología Peninsular - Zamora, 24-27 Septiembre 1996 |