número 45 (3-4) / 2005
Este [o desequilíbrio] só ocorre quando há inquietação pela verdade, quando se revela uma falha do narcisismo e o não convidado, invisível e sem armas, estraga a festa, deixando exposto que tudo pode ser outra coisa." Silvina Rodrigues Lopes*, in revista "Telhados de Vidro", 4, Maio 2005, p. 159 Não ignoro o aspecto subjectivo e algo ilusório de tentar caracterizar o "estado de espírito de um país", realidade multifacetada e em contínuo movimento, com muitos factores animadores e desanimadores (subjectiva-mente vividos por cada cidadão de forma diversa) imbricados.
Também não desconheço a tendência para a mitificação do que é exterior, estrangeiro. E, para começar com os nossos vizinhos, e como amante de Espanha, país em franco "desenvolvimento", não deixo de manter a distância necessária para tentar conjugar essa paixão com uma vontade de conhecimento objectivo. Comungo a este respeito do espírito de Eduardo Lourenço ao ter estimulado a criação do Centro de Estudos Ibéricos (2001) na cidade da Guarda, já não sentinela para vigiar a Espanha, mas possível porta para ela**. É fulcral perceber que a Meseta não é uma espécie de deserto de onde podem vir inimigos, mas uma terra irmã do nosso país, particularmente do seu interior, cujo "desenvolvimento" deveria ser um dos fitos de Portugal, "entornado" para um litoral cada vez mais em degradação. Mas... não se exige de um preâmbulo que ele seja necessariamente produto de um trabalho científico. Faltam é os espaços onde a pessoa comum, que eu sou, possa fazer ouvir a sua voz, a sua opinião, cerrados que estão os "media" a um conjunto limitado de "vozes" que por modo subtil bloqueiam (como em muitas outras instânscias de mediação) o acesso aos outros. Trata-se de um conjunto de oficiantes que se revezam na "nobre missão" de regularmente explicar ao país o que o país deve pensar que é. A questão não está no facto de existirem, pois necessitamos dessas reflexões, mas multiplicadas, plurais; a questão está sim no facto de serem tão poucos e de se munirem muitas vezes de retóricas (diversificadas) de autoridade (simpática, como convém à sociedade hedonista) que fazem da população - caricaturalmente - uma assistência passiva à espera de homilias. O nosso problema é fundamentalmente um problema de lobbies insta-lados, de muitos tipos (congregando desde os mais espertos, ricos, cultos, até à outra margem do espectro, a dos mais embrutecidos) que, da econo-mia à cultura ou à política, esmagam a nossa produtividade e felicidade colectivas. Os dois aspectos estão evidentemente interligados, porque como é óbvio uma pessoa motivada faz coisas muito mais interessantes do que uma não motivada, tanto em qualidade como em quantidade (outra dicotomia a superar, porque precisamos do bom, mas expandido, aberto, alargado, livre, e portanto multiplicado em experiências, em tentativas). Portugal, que nunca chegou a ser um país meritocrático (o sistema da "cunha" sempre funcionou, e continua a funcionar) passou também com a "era do consumo" (não importa agora de quê, por quem, ou em que escala) a ser o "país das festas", o país hedonista que parece precisar de se alienar constantemente, como - permita-se-me a crueza da imagem - o bêbado para esquecer. Um enorme carnaval se instalou - seja ele articulado com o futebol (que abarca quase todos os cidadãos) ou com outras formas de "animação das populações", já cansadas de apenas ir aos centros comerciais passear o vazio dos seus domingos, ou de se entreter com escândalos, desastres, e peripérias dos "políticos" - carnaval do qual se alheiam os que podem, sobretudo os que têm algum capital cultural que, salvo erro, está ligado a uma actividade mais ou menos criativa que permita sentido de continui-dade, sensação de que a pessoa se não está a diluir no clima geral de dissolução, capacidade de instalar um projecto para a sua vida, e portanto aprofundamento de um rumo, por mais itinerante ou disperso que pareça. Não se trata de uma consideração moralista, esta, que já sei não agradar a muitos; trata-se de tentar reflectir, como fez brilhantemente José Gil no seu recente livro, sobre a realidade em que vivemos e de que somos co-res-ponsáveis. Não se trata de tentar mudar radicalmente o mundo, propósito utópico que era o da minha geração quando adolescente ou jovem, mas trata-se de mudar sempre coisa no mundo - sem o que não sei como se pode viver, evitando o embrutecimento, Construir-se e manter-se como pessoa equilibrada, nem quezilenta ou elitista, nem mundana e populista, e produzir algo de interessante para si e para os outros, com todo o trabalho inerente, tornou-se hoje um factor de resistência fundamental à sociedade das telenovelas (e de outros produtos de consumo televisivo de baixo nível) e dos telemóveis, como próprio símbolo que é de toda uma sociedade e modo de vida; um instrumento em princípio útil, mas na prática transformado numa "bomba-relógio" atenta-tória da privacidade. Na verdade, a sua "utilidade" é perversa e viciante - tornou-se num instrumento de fragmentação e num sintoma da solidão em que vivem os indivíduos, confinados a pequenos grupos e à "família", com todas as transformações que esta vai sofrendo. Isto é, retraídos em "casulos protectores" do espaço público que não existe em Portugal, ou que, exis-tindo, é extremamente agressivo. Entretanto, como desde o início da "história" do ser humano, há "festas" em todas as terrinhas, em todas as corporações, em todas as agremiações, para todos os gostos, para todos os escalões sociais, como quem cumpre um ritual a que na maior parte das vezes só o álcool (ou outros estimu-lantes) vem dar alguma vibração. Não ignoro nem a antropologia nem a história da "festa", e como esta é constituinte da própria sociedade***. Sem um "acontecimento atractor" uma terra não existe. Quão longe estamos porém das "praças maiores" espanholas e da sua animação "espontânea", local de convívio e de encontro entre os que por lá passam. As próprias universidades se tornaram, essencialmente, locais de festas, de comemorações e outros ritos, nelas se instalando por vezes, mesmo, autênticos palcos de concertos (porém, estes não são em regra para espec-táculos "culturais''). De facto, a prática até poderá (poderia) ser salutar se tais concertos tiverem (tivessem) o mínimo de nível... mas, tal como nas festas de aldeia, ou sazonais, é o chamado fenómeno "pimba" que tende a predominar, sob a explicação de que as pessoas querem é divertir-se. É caso para dizer: diz-me com o que te divertes, dir-te-ei quem és. A questão do "estudo" propriamente dito - supostamente o principal objectivo com que os cidadãos pagam o "serviço universitário", porque o divertimento dos jovens pode ser buscado noutros lados também - é muito secundária para uma parte significativa dos estudantes, talvez psicologi-camente instáveis, e muito duvidosos quanto à eficácia dos seus diplomas no futuro mercado de trabalho. É certo que faltam nas faculdades espaços de verdadeiro convívio, prazer de viver aquele microcosmos, e intercâmbio de ideias e de sentimentos - o tal espaço público deficitário, agora ao nível da universidade. Mas que fazer, se em certos casos as universidades quase se transformaram em empresas, muitos professores em criaturas voláteis que trabalham para o seu ego, e os alunos em figuras que não têm condições para acreditar "naquilo", e que em muitos casos se querem é "safar" no meio do caos, não direi generalizado, mas pelo menos, em bastantes casos, reinante? Uma das coisas mais irritantes para um arqueólogo é, quando volta de escavações - do seu trabalho de campo, da sua investigação, do seu labora-tório primordial, se quiserem - lhe perguntarem constantemente "como correram as férias". Por vezes não se trata de mera confusão, ou distracção. Uma pessoa explica mais uma vez que escavações - ainda por cima integradas no currículo de um curso de arqueologia (experiência rica que, a pretexto de Bolonha, será eliminada? ...), ainda por cima comparticipadas por um projecto europeu através da faculdade, com parceiros interna-cionais, como me aconteceu este ano - são o contrário de férias. Se são "descanso", são-no apenas das burocracias e do "stress" das cidades, onde nos bombardeiam continuamente com problemas. Ficamos ali mais tran-quilos, apenas porque, como me dizia H. Schubart, nos podemos dedicar a uma questão só, a da análise de um sítio, por exemplo. Fazer algo que, como a leitura atenta, vai sendo raro - aprofundar qualquer coisa, confundir-mo-nos com o objecto da nossa atenção, perdermos a noção do tempo, articulando paixão com raciocínio, o exercício do corpo (independentizado artificialmente na ginástica) com a imaginação. Viver integralmente um acto de criação, ainda por cima em grupo. Mas também aí muitos estudantes recorrem permanentemente à "festa", roubando horas ao sono e alienando-se, à noite, dos constrangi-mentos que a disciplina do trabalho colectivo diário exige. Não aguentam a rotina e a persistência próprias da ciência, típicas da investigação. Porquê? A resposta exigiria um estudo longo. Digamos que devido ao hedonismo dissolvido no ar e à satisfação fácil das "necessidades" (sempre uma "cons-trução" incorporada) a que hoje em dia se habituaram. Muitas pessoas não vivem as escavações como "poíesis", como acto de criação altamente estimulante - e também aí o nosso ensino precisa de apostar numa aprendi-zagem activa, precisa de passar a mensagem de que não se atinge o verda-deiro prazer (o sublime?) sem passar pelo esforço****, sem educar o corpo e a vontade. O que implica algum sofrimento, experiência sem a qual não haveria prazer autêntico, ampliação do sujeito. Muitas vezes, durante as escavações, sinto-me como aquele cientista que, no seu laboratório, tivesse permanentemente pessoas a falar, a cantar, a divertir-se; é extremamente difícil a concentração ao ar livre, no meio de dezenas de jovens e num certo ambiente que facilmente tende para o "festivo". Como diz Silvina R. Lopes (op. cit, p. 165), precisamos de poesia, que "só existe se se dissolver no ar. Se se oferecer à respiração"; e acrescenta (ib., p. 166), "O que está próximo da poesia não são as técnicas descritivas, nem de arquivo, nem de comunicação, nem de publicidade, nem de criação ou inspecção de conteúdos - é o pensamento, a filosofia, a atenção que se (nos) desloca para o outro." Do que precisamos é tão só de pensar. De sentir (são a mesma coisa). De fazer contra-corrente, em todos os lugares, aos agentes da burocracia e da mediania, isto é, da opressão. Por muito que essa opressão apareça sob a face da simpatia e do "entertainment". De criar silêncio, novas sociabili-dades, momentos de intensidade. Hitchcock foi brilhante, no seu filme "Os Pássaros", ao utilizar como signo da inquietação e do aprisionamento aquilo que normalmente é o anúncio da liberdade e da beleza: a ave. Lutar pelas aves que são música contra as aves que, ocupando cada vez mais lugar, e aglutinando-se como se estives-sem conjuradas, são espectros dominadores, é o nosso trabalho quotidiano. Este não precisa de dar nas vistas nem de ser ostensivo - bem pelo contrá-rio, a eficácia consegue-se pela disseminação e pela persistência, contra a tentativa de invizibilização a que se é, por vezes, devotado. Surprendendo pela serenidade e pelo esforço, em "velocidade de cruzeiro", e por fazer isso tudo cllm uma certa felicidade, sem acinte nem acidez. Não vale a pena voltar a cara a essa luta, tentar evitar o sofrimento, a desinquietação desse embate contra a mediania. Quase todos os autores que "fizeram história", que romperam rotinas, que deixaram algo sobre que valha a pena debruçarmo-nos, e que no seu tempo, normalmente, "estra-garam a festa" de muitos outros, são hoje os que fazem as nossas delícias. Mas também não precisamos de escolher esses caminhos. E, assim preferir "viver a nossa vidinha", enquanto a doença e a morte não espre-itam. Ou seja, baixar a fasquia da ambição e da esperança e existir feliz na rotina e numa certa forma de escassez, que até pode diariamente assumir a grandiosidade de um hipermercado. Porto, Outubro de 2005 Vítor Oliveira Jorge * Considero esta autora uma das mais lúcidas mulheres portuguesas. Juntamente com Maria Filomena Molder (que aliás colabora na mesma revista) ou com uma escritora como Maria Gabriela Llansol, é notável. Apenas indico estes nomes como três exemplos de pessoas ligadas à escrita, obviamente. Há demasiadas pessoas a escreverem banalidades, a encherem de ruído todos os espaços de comunicação. ** V. por exemplo, "O Outro Lado da Lua. A Ibéria segundo Eduardo Lourenço", Porto, Campo das Letras, 2005. *** V. por exemplo sobre as relações entre o teatro, o ritual, a festa, um clássico, que trabalhou com V. Turner, Richard Schechner, "Performance Theory", Londres, Routledge, nova ed. pb., 2003. **** V. por exemplo, sobre o belo e o sublime, o magnífico livrinho produzido aquando da "Lisboa Capital Europeia da Cultura 94", "Do Sublime. On the Sublime" e publicado em Lisboa pela "Socie-dade Lisboa 94". |
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