número 44 (3-4) / 2004
Há sintomas vários no momento histórico actual de que alguma coisa de extremamente complexo e grave se está a passar, e que implica uma enorme modificação de valores e de regras. Lipovetsky, e tantos outros autores, já o diagnosticaram perfeitamente. Aliás, não nos referimos à sociedade portuguesa em particular: aqui os efeitos da globalização são notórios, muito embora o "xico-espertismo" português seja um fenómeno muito específico, próprio de um país "modernizado" à pressa, após uma revolta militar, uma revolução popular, e uma "normalização democrática", processos históricos que obviamente criaram aqui muitas especificidades.
Sinais dessa modernização à pressa: parece que somos dos que mais usam telemóveis, ou cartões de crédito. E também: endeusamento recente da Internet e das novas tecnologias como panaceia para resolver tudo, emblema de uma geração de "trepadores rápidos", ansiosos de afirmação, queimando etapas (e pessoas, se necessário) para chegar ao topo. Ao velho Portugal, dito miticamente dos "brandos costumes", de Salazar, pode suce-der uma nova forma de autoritarismo, a de estilo "big brother". As "novas tecnologias" irão ser instrumento de emancipação humana, de maior comunicação democrática, ou de controlo e opressão? Compete-nos a nós decidir. Se ficarmos calados e quedos (como alguns comodistas, que elabo-ram teorias auto-justificativas aparentemente imbatíveis) alguém estará a todo o momento a decidir por nós, a traçar a cartografia do nosso futuro. Cada recuo nosso, é uma abertura de espaço para o avanço do outro - isto falando esquematicamente, e ser querermos ser maniqueísta, como é óbvio. Sem pretendermos também armar em profeta ou arauto dos "bons costumes" (como que investidos de uma superior qualidade ou virtude), não podemos deixar de pensar em que mundo é que, cada vez mais, vivemos (ou sobrevivemos), hoje. Estar atento a esses sinais é importante (sem querer confundir apres-sadamente casos específicos com tendências gerais, num "sistema" tão pretensamente coerente como ficcional, e mais saído da imaginação própria do que de uma análise lúcida dos acontecimento). Tentemos pois entrar neste campo difícil e, a partir de algumas experiências - entre inúmeras (inclusive relacionadas com o funcionamento e o ambiente que se vive em instituições públicas, importantes, significativas, que poderíamos citar) - de que tivemos conhecimento directo, despindo-as de particularismos inúteis e incómodos, procurar mostrar a radical estranheza que elas nos provocam - primeiro passo para as tornarmos objecto de reflexão. Isso, antes mesmo de as querermos qualificar como de facto apetece: a de uma generalizada putrefacção de valores de solidariedade, de convivia-lidade, de respeito mútuo, de consideração pelo trabalho e pela "herança" que nos outorgaram os mais velhos, de humanização da vida, em suma. Dir- -nos-ão que esta é uma apocalíptica, ou pessimista visão. Os menos inocentes sabem bem que não o é. E muitos deles são de algum modo ou de outro coniventes com "o processo em curso", vão na onda pensando apro-veitar-se dela. Quanto a nós, mais vale adiantarmo-nos ao tempo e prever o que parece desenhar-se, mesmo exagerando um pouco o quadro, do que sermos apanhados desprevenidos. O cérebro humano, como disse o Prof. Sobrinho Simões num programa televisivo, é sobretudo uma formidável máquina de previsão. Primeiro episódio A 11 de um mês deste ano de 2004, um colega recebe por email (que lê já na madrugada de 12) um convite para integrar um painel de avaliadores de projectos científicos de um outro país europeu, para o qual teria de deslocar logo daí a 12 dias. Os projectos a analisar em três dias eram mais de 100 naquela área científica, num local afastado do centro da capital, ou do aeroporto. Em princípio era preciso, uma vez chegado ao dito destino aeroportuário, tomar um metro, que por sua vez daria acesso a um comboio, saído do qual (passados uns 50 km) o dito "expert" teria de tomar um táxi para ir a um centro de recepção saber qual o hotel em que estaria alojado durante o trabalho de alta responsabilidade que assim de chofre lhe era solicitado. Pedia-se que, em caso de impossibilidade, indicasse um colega da mesma área. Doente, e portanto sem poder aceitar o honroso - e sobretudo profissionalmente interessante - convite, foi o que fez, tendo este segundo "cientista" ajustado por telefone pormenores da viagem, não sem mani-festar alguma inquietação com trabalho tão stressante que assim lhe caía na agenda, ele que já estava "a fazer" a de 2005 (isto é, como acontece com quase todos nós hoje, já estava com a agenda de 2004 preenchida). Assente a viagem, até com a agência desse país, encarregada da reserva de voos, que lhe indicaram (e para onde também o colega telefonou), e rece-bida a documentação de apoio para a reunião de trabalho, foi com estupe-facção que, na antevéspera da partida, depois de desmarcar uma semana de aulas e de pedir equiparação a bolseiro fora do país, o mesmo colega recebeu um sucinto mail da entidade que o convidara, dizendo que afinal prescindiam da sua colaboração, e que a viagem estava cancelada. Ponto. Atónito com o que parecia ser uma atitude inexplicável, o colega pediu por mail a essa entidade (bem como o primeiro contactado, a quem comu-nicou o facto) uma razão verosímil para tal "dispensa" de última hora, relati-vamente a um assunto que tanto tempo e sossego já lhe roubara. Até ao momento em que revejo estas linhas (25.06.04) nunca que eu saiba tal explicação foi dada, a qualquer dos dois colegas em referência. Como diria o saudoso Fernando Pessa: "E esta, hem?"... Segundo episódio Um organismo de ensino superior do país convida um colega para uma intervenção integrada num painel de oradores, que por sua vez se inseria num conjunto de colóquios, em dias sucessivos. Aceite a proposta, e defini-do o programa, a organização comunica ao orador, professor universitário, que tem todo o gosto em oferecer três a cinco entradas gratuitas a alunos ou colaboradores seus, pedindo indicação de nomes. Pressuroso, o convi-dado sugere tais nomes, comunicando a boa notícia aos interessados, e satisfeito por assim dar oportunidade a alguns jovens de assistirem a uma realização de interesse. Só um deles (possuidor já do grau de mestre) acaba por estar presente (poderiam os ausentes até ter sugerido nomes alterna-tivos, mas não o fizeram). Porém, essa presença dá-se em dia diferente daquele em que o referido orador falava; o beneficiário em causa envia então um mail ao professor agradecendo muito ter podido lá ir, que tinha sido muito interesssante. Porém, no dia em que esse orador interveio (e onde falaram, na mesa, mais umas cinco pessoas, todas abordando temas muito estimulantes e sugestivos), por sinal, nenhum estudante ou colabo-rador seu, segundo me contou, estava a assistir. Tal professor nunca percebeu, disse-me, o que se teria passado. Qual refrão, Fernando Pessa volta a ecoar: "e esta, hem?"... Terceiro episódio (ou situação instalada) Um determinado professor universitário encontra-se a concluir o ano lectivo docente. Numa das disciplinas em que mais apostara (por ser já para alunos de segundo, terceiro e quarto anos, e pelos aliciantes temas que aí se poderiam tratar), e que é uma cadeira de opção inclusivamente aberta a vários cursos, tudo pode acontecer, desde aparecerem à aula uns oito, dez estudantes, como apenas um... como até nenhum! Para além do "suspense" assim criado, decorre daqui o facto de nunca se poder seguir qualquer assunto ou debater qualquer problema nas aulas, de forma sequente. É um curso "self service", ou mesmo "por correspondência" (casos de há inscritos de que o dito docente só teve contacto por mail...). Já no primeiro ano do mesmo curso, o ambiente parece ser mais "festivo", qual sala de escola do ensino básico ou secundário. O professor e os poucos alunos atentos têm dificuldade em cumprir cada aula, tal é o ruído e irrequietação de fundo. A maioria das pessoas chegam às horas que querem, saiem e entram quando querem, conversam com quem querem, e, quando finalmente se lhes pergunta se têm dúvidas ou questões, a maior parte das vezes olham para o docente quase como crianças atónitas cuja brincadeira tivesse sido inopinadamente interrompida. Verdade se diga que, no meio deste panorama desolador, há estudantes trabalhadores que fazem um esforço por vezes fantástico para conseguirem frequentar, e obter, um curso superior. O que parece é aumentar o fosso entre uma maioria sem qualidade (e sem consciência disso, sem auto-reflexão nem auto-crítica!) e uma minoria com certa qualidade ou, pelo menos, com muito empenho. Mas as bases culturais revelam muito: numa turma de 1.º ano de um curso universitário de uma Faculdade de Letras perguntámos há dias quem conhecia o escritor Júlio Dinis. Apenas uma aluna, que tinha lido extractos de um dos seus romances. Está tudo dito. Uma pessoa às vezes pergunta para quem está a falar, quando dá uma aula - será para seres de outro planeta?... Há que reformular com muita urgência o ensino secundário, impondo - impondo, sim, com autoridade legítima - normas e hábitos de estudo, con-centração, comportamento, cultura, e não permanecendo com o laxismo, e a falta de estímulos ao desenvolvimento da força de vontade, que actual-mente parecem reinar entre crianças e adolescentes. Um sistema que não educa os jovens e falha na aprendizagem destes, fornecendo-lhes modelos fortes e marcantes que inclusivamente possam vir a contestar mais tarde, é um sistema que condena o futuro do país de forma gravíssima, atentando contra o desenvolvimento da capacidade dos jovens de se constituirem como adultos felizes e equilibrados. Liberalismo laxista e autoritarismo desu-mano são as duas faces da moeda, os dois lados da desatenção ao outro, da perda de comunicabilidade e de sentido de comunidade. Algumas frases soltas, muito pronunciadas nos tempos que correm, vêm ao nosso espírito e despertam reflexão, porque parecem fazer sistema e esclarecer parte do que foi dito. Uma dessas frases é: "hoje tudo acaba por se saber". Outra é: "hoje ninguém está fora do sistema". Quer dizer, numa sociedade da informação, da comunicação, o segredo estaria ausente, a sociedade seria transparente para si mesma. Doce ilusão. Quanto mais comunicação, mais ruído. Quanto mais espectáculos, mais bastidores. Quanto mais máquinas de fazer informação, mais necessidade de subtilizar e sofisticar os sistemas de produção, armazenamento, gestão e difusão da mesma. Só um anjinho não percebe isto! Quanto mais "verdade", mais "mentira". Quanto mais dispersão e heterogeneidade, mais controlo. Novas formas de transparência articulam-se com novos regimes de opacidade. Ramonet, por exemplo, contrapõe as sociedades autoritárias, fascistas, onde a informação é escassa, às sociedades "democráticas", onde ela tende a ser tão abundante que não há tempo nem distância para formar um juízo crítico, para escolher, para triar. É-nos literalmente despejado lixo informativo em cima todos os dias às carradas, desde os "out-doors" aos jornais, desde a televisão às diversas formas de "cultura light", que criam um novo sentimentalismo cor-de-rosa, alienante (sim, alienante), moderno "jovem", "desportivo", e profundamente fatigante. Nunca se utilizou tanto a palavra "liberdade" em termos publicitários - mau sinal. A liberdade quando existe vive-se, como a felicidade e o amor, não precisa de ser publicitada como produto. Hoje ninguém está fora do sistema, quer dizer, as utopias transfor-madoras não têm lugar. Pergunto: e os milhares de drogados, estão dentro ou fora do sistema? E as pessoas que dormem e vivem na rua, estão dentro ou fora do sistema? E aqueles universitários (não digo que são todos...) que se intitulam "doutores" e se comprazem em diversos rituais, mas nunca leram um livro de Camilo ou Júlio Dinis, estão dentro ou fora do sistema? O que é, agora, estar "in" ou estar "out"? O que é saber? Porto, Junho de 2004 Vítor Oliveira Jorge |
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Preâmbulo Cognição social e aprendizagem cultural no homem Luís Cesariny Calafate Para uma teoria da anedota portuguesa Carlos Nogueira Beira Interior romana: pessoas e atitudes Ana Paula Ferreira Real República Palácio da Loucura: viver, aprender, aplicar Teresa Carreiro Família e estratégias matrimoniais na organização do sistema social rural. Arouca e Maia: um estudo de caso Fernando Matos Rodrigues, José Augusto Maia Marques DOSSIER: O TEMPO E A MÚSICA O tempo e a música Adriano Jurdão O tempo e a música Filipe Pires A lição de Bernardo Moreira de Sá (1853-1924). Autoridade e comunidade artística e pedagógica Henrique Luís Gomes de Araújo O tempo e a música: observações sobre uma abordagem teórica da etnomusicologia. Aspectos temporais, formais e rítmicos no batuque de Cabo Verde Jorge Castro Ribeiro V Á R I A Castanheiro do Vento (Horta do Douro, V.º N.ª de Foz Côa). Contributos para o estudo dos resultados das primeiras campanhas de trabalhos (1998-2000) Ana Margarida Vale La agricutura en el Valle Amblés (Ávila, España) durante el III milenio CAL BC. Consideraciones arqueopalinológicas José Antonio López, Pilar López García Sobre antropologia Vítor Oliveira Jorge "A acreditação do arqueólogo: o papel do jovem licenciado" Seminário de reflexão interdisciplinar 2004. Tim Ingold: Percepção e meio |