número 38 (1-2) / 1998
Há uns anos atrás, estava ainda a Faculdade de Letras do Porto no edifício do Campo Alegre, a minha colega e amiga Prof.ª Doutora Margarida Losa, especialista em Literatura Comparada, convidou-me a colaborar no "seu" mestrado, em que se estudava o tema da Utopia.
Numa universidade como a portuguesa, parcelada em "comparti-mentos" que nem sempre comunicam entre si como deveriam, foi essa uma grata oportunidade, não só de juntar três dos meus "gostos" - a Pré-história, a Antropologia e a Literatura -, como de conviver um pouco, e trocar impres-sões, com pessoas que, estando num "campo" diferente daquele a que me dediquei (a Arqueologia), convergiam afinal nas mesmas questões funda-mentais. Foi o que se poderia chamar uma verdadeira "descoberta do Outro" dentro da própria casa onde trabalho. Mais do que prosseguir rotinas disciplinares, sempre esperei, da universidade, esse tipo de desafio e de vivência - tornando-a num espaço de encontro de diferentes "códigos", de variadas "tradições" e "vocabulários", ou, por outras palavras, num autêntico laboratório de cultura. No qual, através do diálogo, mesmo ocasional, ou, se quisermos, do cruzamento de perspectivas, inesperadamente se nos revelasse aquilo que de mais funda-mental sempre procurámos, e que a nossa investigação cantonada sucessi-vamente adiou. Não resisto a transcrever aqui o "programa" daquela minha curta "aula", porque é também nesse espírito transdisciplinar que actua a direc-ção da S.P.A.E. e desta sua revista: «UTOPIA E SOCIEDADES "SIMPLES": desmistificando a "ideologia primitivista" (hipótese de um programa a não cumprir, porque utópico) 1. As sociedades "simples" como utopia do Ocidente; 1.1. Os "simples" que são os outros (as perspectivas da Antropologia); 1.2. Os "simples" que nós já fomos (as perspectivas da Pré-história); 2. As utopias das sociedades "simples"; 2.1. As concepções sobre as "origens" "antes do contacto"; 2.2. Milenarismos, messianismos, visões sobre o futuro; 2.3. Antropologia, psicanálise, história das religiões - diferentes discursos sobre "o saber dos mitos"; 3. Como se constrói o nosso olhar sobre a realidade do Outro?; Que possibili-dade temos nós de "integrar" o Outro, de o compreender, sem o procu-rarmos absorver na nossa identidade? Ou será essa pergunta já de si ingénua ou utópica? Poderemos libertar-nos do "demónio" do evolucio-nismo, que consiste em vermos o Outro como algo por onde já passámos e que já superámos (o Outro como o fóssil de nós)? Como conviver com todos os "outros" que existem em nós e, apesar disso, mantermo-nos unos, reconhecíveis perante nós próprios? 4. Tem sentido a pergunta: eram os "primitivos" mais felizes do que nós? (antes de contactarem connosco, decerto). Mas, quem põe a questão e quem responde a ela? E, tendo deixado de existir esse quem, ou tendo-se multipli-cado ao infinito, será a arte a "redenção" possível para essa ausência? Encontraremos nós na criação artística contemporânea a resposta para a "nostalgia do paraíso"? Disse Ramos Rosa: "A poesia é o retorno ao primor-dial, uma procura da mãe sob a figura da terra. Essa unidade entre a palavra e a terra é-lhe de certo modo impossível, e é esse o lugar submerso que move a escrita e religa o ser e o mundo, ligando assim a nostalgia e o desejo". (entrevista ao Expresso-revista, 19 .11.1988)». Passados anos, decerto não colocaria já as questões da mesma forma; nem usaria a mesma terminologia ("sociedades simples", "primitivas", etc., mesmo entre aspas). Mas os problemas básicos que aí levantava, ou que estavam subjacentes ao meu "programa", são os que continuam a mover-me; são, julgo, alguns dos problemas centrais das chamadas "ciências humanas". Como foi possível dar-se este fenómeno insólito na história da Terra (se é que ela já não é um "fenómeno insólito" no contexto do universo), que foi o aparecimento de seres humanos, a partir de outros primatas, apareci-mento esse que, à escala geológica, é infinitamente recente? Como é que esses seres produziram uma inacreditável diversidade cultural, no tempo e no espaço, que começa na matriz essencial das línguas, simultaneamente veículos de comunicação e de radical incomunicabilidade? Como é que essa diferença acabou por cristalizar em relações de poder, de domínio, de explo-ração e de exclusão, que, nos seus múltiplos matizes, são de todos os tempos, mas se tornaram no nosso século em massacres cientificamente planeados e organizados? Como é que uma forma específica de cultura - ocidental, branca, cristã - teve a veleidade de, em nome de variados princí-pios universais (os da salvação do outro pela conversão, os dos direitos "naturais" de todos, os da ordem estatal, da democracia e do mercado) se tentar impor a todas as restantes, liquidando-as, ou arredando-as para as margens do exótico? Como é que a modernidade, em nome da razão e de diversos princípios como "liberdade, igualdade, fraternidade", nos impôs a todos um ordenamento tão radical que vai até à própria constituição do sujeito, locus da decisão e, simultaneamente, da sujeição mais profunda? Há dias, comentando o título de um livro que eu e Raúl Iturra (do ISCTE) coordenámos (e que resultou de um ciclo de conferências da S.P.A.E./A.P.A.), chamado "Recuperar o Espanto: O Olhar da Antropologia" (Porto, Afronta-mento, 1997), uma crítica achava-o "vago e ambíguo" (Público, 8.11.97). Mas a palavra "espanto", na sua radicalidade poética, pretendia precisamente chamar a atenção para uma perspectiva que recoloca como problemático, como inaudito, aquilo que se nos afigura como vulgar, quotidiano, natural - a postura adoptada por autores incontornáveis como Michel Foucault, por exemplo. E para que serve estudar, investigar, se não for para nos descentrarmos do que, aqui e agora, acabámos por ser? Para nos interrogarmos sobre as questões básicas que acima enunciei, entre tantas outras? Para utopica-mente tentarmos "ver" antes de qualquer racionalização, o que, obvia-mente, percebemos ser um projecto absurdo e impossível, mas que obscu-ramente procuramos - essa unidade em que o saber e o sentir, em que o conhecimento e a vida ainda se não teriam desprendido um do outro, essa nostalgia da verdade e da felicidade confundidas, uma utopia, sem dúvida, do(s) sujeito(s) histórico(s), pertencentes a uma cultura entre milhares de outras, que inevitavelmente somos. Uma das mais notáveis antropólogas contemporâneas - Henrietta Moore, da London School of Economics - coordenou, em 1996, um livro fascinante: "The Future of Anthropological Knowledge" (Londres, Routledge), em cujo capítulo inicial aborda as relações entre o conhecimento (e em particular, o antropológico) a identidade e o poder. O que ela nos diz é que, hoje, já não é o pensamento ocidental - por muito pluralista ou "pós-moderno" que seja - o único a produzir conhecimento de âmbito e alcance trans-local; não é apenas na nossa cultura que se pensa globalmente a "modernidade tardia" em que nos situamos. Em diversos pontos do globo, outros autores, oriundos do "terceiro mundo" ou das perspectivas femi-nistas, avançam com interpretações alternativas que nos questionam e contornam, com visões alternativas, as nossas próprias problemáticas. É capital ouvir essas vozes. Pela sua parte, a S.P.A.E. organizou, em 10 de Novembro de 1997, uma "Jornada sobre Racismo, Xenofobia e Outras Formas de Exclusão" (coordenada por Henrique Gomes de Araújo, Paula Mota Santos e Paulo Castro Seixas) - foi um dia fascinante, aberto sobre questões nodais de vida contemporânea, focadas por intervenientes muito diversos, alguns dos quais porta-vozes dos próprios excluídos, e não apenas pensadores do assunto. Mas, a exclusão é uma hidra de muitas cabeças ... e está presente no nosso quotidiano, no estabelecimento subtil de hierarquias, no espaço- -tempo que é dado a cada um de nós para falar, para emitir parecer, para formular enunciados, para captar a atenção dos outros, para ocupar um qualquer "palco" da multímoda acção social. Falar de exclusão é falar de pobreza e de muitos problemas extremos que afectam a humanidade (não a abstracta humanidade em geral, mas a que convive connosco dia a dia), mas é também compreender, por ex., o espaço académico e as teias que aí se tecem, os jogos de poder para que Foucault tão genialmente nos alertou. A universidade, por ex., é um dispositivo dos "processos de governa-mentalidade" dos indivíduos, e nós, como professores, somos agentes activos desse sistema. A educação, escreve Moore no livro citado (pp. 13-14), "( ... ) é um dos meios principais através dos quais os indivíduos são levados a adequar-se a objectivos morais, éticos, económicos e políticos ( ... )". A disponibilidade de tempo que nos dá a obrigação de investigar pode não ser desperdiçada se a utilizarmos para conseguir recuo de perspectiva e para, com os nossos discentes e colegas, tentarmos manter viva a crítica auto-reflexiva, atenta às vozes diferentes que não vêm apenas de longe, não são "exóticas", mas podem despontar em qualquer um e em qualquer lugar, desde que lhes demos o direito a expressar-se; melhor dizendo: desde que orientemos activamente os outros no caminho da sua expressão alternativa. Bem, um preâmbulo não é um ensaio: é preciso concluir aqui. Espe-remos que os sócios da S.P.A.E. e os nossos outros leitores nos enviem reacções a este novo volume que produzimos e que, também neste espaço, um maior e mais diversificado número de "vozes" se continue a fazer ouvir. Porto, Novembro de 1997 Vítor Oliveira Jorge |
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Preâmbulo Artistas, primitivos e antropólogos à descoberta da universalidade das performances artísticas ou a modernidade do primitivismo Paulo Raposo Pintura dos costumes da nação: alguns argumentos António Medeiros A alguns dos meus mortos Vítor Oliveira Jorge O Minho camiliano no romance «A brasileira de Prazins» José Luís Lima Garcia A dança no seio da reflexão antropológica. Contributos e limitações herdados do passado com ecos no presente Maria José Fazenda O filósofo e o arqueólogo Richard Bradley O eclipse de Deus sobre ritual e hegemonia política na RDA Jorge Freitas Branco Aspectos de morfologia social na estrutura agrária da Atadoa - Condeixa (Portugal) o regadio tradicional Rogério Carvalho Histórias de vida e etnografia na análise das representações e práticas dos professores Ricardo Vieira |