número 37 (1-2) / 1997
Prosseguimos neste volume XXXVII (fasc. 1-2) o projecto de revista anunciada no vol. anterior. E nele decidimos incluir, com continuação no tomo seguinte (fasc. 3-4), um "dossier" sobre "Família e Herança em Portu-gal", resultante de colaboração com Brian J. O'Neill, do ISCTE, que muito agradecemos. Mas, simbolicamente, também optámos por substituir os TAE, no momento em que entram no seu 79.º ano de publicação, "revista inter e transdisciplinar de ciências sociais e humanas". Estamos pois, mais do que nunca, abertos à colaboração da comunidade científica, renovando o nosso apelo para que todos os que trabalham no vasto âmbito daquelas matérias nos enviem os seus estudos para próxima publicação. Não ignoramos que o conteúdo deste volume está ainda muito longe desse projecto ambicioso: mas pensamos que o anúncio de tal horizonte é fundamental para que a SPAE possa aproximar-se mais do que consideramos ser um aspecto basilar do seu papel cultural.
Cremos que, se os TAE se tornassem na desejável encruzilhada de todos quantos se dedicam à investigação das questões referentes à sociedade e ao comportamento dos seres humanos, em qualquer dos seus aspectos, estaríamos a contribuir para um frutuoso diálogo transversal e para a criação de um espaço de comunicação que é ainda raro em Portugal. A matriz antropológica da SPAE e especificamente dos TAE não é contra-ditória com esse desiderato, antes pelo contrário. Todos sabemos como a antropologia começou por encarar o outro como "primitivo"; como esse "primitivo" se transformou em simplesmente "diferente"; e como a retroacção desse olhar, atento às alteridades e à plura-ridade das identidades, acabou por fazer com que a própria antropologia se tornasse no exercício de descobrir o outro (os muitos "outros") que há em (cada um de) nós. E como assim se foi dissolvendo a consistência desses lugares de onde, supostamente, se "vê". Na perpétua fluidez da acção, no fazer e desfazer interminável de sentidos, onde estamos bem longe de ser meros observadores do que quer que seja, tentamos persistentemente compreender uma complexa realidade que nós próprios produzimos (quando mais não seja, pela nossa inacção), e que continuamente nos produz também. Sofregamente tentamos abranger, tentamos apoderar-nos de algo que nos reconforte numa pequena cápsula de saber, antevendo já a desilusão do seu desfecho, da nossa (temporária, porque nunca aceite) derrota. O desejo e a sua desilusão tocam-se, enovelam-se nos extremos de um percurso. Mas de novo partimos para o sentido, para o discurso, para a produção de enunciados, porque estamos definitivamente do lado de cá da lingua-gem, e nos arrogamos a faculdade de, com autoridade, falar. Não temos outro remédio, atiramo-nos ao sentido com a voracidade do predador que se projecta sobre a presa, porque esse é o seu programa. E esta frase é ainda uma forma de iludir a estupefacção que nos causa a nossa, sempre renovada, manifestação de energia, tão poderosa, mas tão insignificante, ridícula mesmo, à escala do mundo que nos rodeia. Um tal exercício de desconstrução não é nenhum privilégio da antro-pologia, apenas uma marca comum da contemporaneidade. Mas havemos de reconhecer que o "saber antropológico", na sua trajectória, acompanhou e ajudou também a produzir esse modo de estar, esse descentramento do sujeito em relação ao seu saber, à sua peculiar tradição cultural, à consciên-cia da arbitrariedade de se ser o que se é, ou o que se julga que se é. Quem produz um enunciado sabe que pode contar com o nosso secreto sorriso, e sabe que nós sabemos que ele está intimamente a sorrir também, de forma irónica, do que diz. E assim até ao infinito, como num jogo diante de espelhos afrontados. O mundo social foi sempre um teatro, mas nós, agora, interiorizámos tanto essa consciência que já sabemos (sentimos) que estamos todos a "actuar", e apenas somos espectadores da "performance" uns dos outros. Observamos, por vezes com atenção "científica", a "presta-ção" dos actores que nos circundam, procurando perscrutar a nossa própria actuação nessa peça sem guião. Não há discurso mais sério, profissão de fé mais sentida, ou ocasião mais solene, que não tenham por detrás de si um eco infindo que delas se ri; e vice-versa, numa despolarização constante. Esta circunstância estilhaçada da contemporaneidade instala o discurso das "ciências humanas" como evidentemente importante para a "descodi-ficação" dos voláteis sentidos que nos atravessam. E, nesse universo, a pers-pectiva da antropologia (como da história, ou da filosofia, ou da literatura... e poderíamos continuar) é obviamente útil. Em antropologia, por hábito, falam muitas humanidades, muitas culturas, que não apenas a nossa, ocidental, cristã, branca. A antropologia é um lugar tradicional de encontro e de partida, de espanto e de incirporação, de recusa e de aceitação. Nesse sentido, é um tecto bom - certamente como muitos outros - para abrigar o diálogo, a interacção, a actuação de saberes diferentes, desejosos de joga-rem o jogo, por vezes aliciante, da interdisciplinaridade. Pois é própria do jogo a emoção que, por momentos, nos leva a colar- -nos à acção, a acreditar que o que vemos ou fazemos é mesmo a sério. E é nessa aresta da crença e da descrença que se move, ténue mas irrecusável, o prazer de viver e de aprender. Porto, Janeiro de 1997 Vítor Oliveira Jorge |
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Preâmbulo Ciência e Democracia Helena Vaz da Silva Descarte e a Modernidade - Razão, emoção e afecto Henrique Gomes de Araújo Património, Museu e Dialogia Paulo Castro Seixas Marialvismo. Fado, touros e saudade como discursos da masculinidade, da hierarquia social e da identidade nacional Miguel Vale de Almeida A dádiva alimentar. A festa as relações sociais - A Festa de S. Sebastião numa aldeia de Barroso Alberto Lameiras Elementos para a história recente da Arqueologia portuguesa: a actividade da Comissão Instaladora do Instituto Português de Arqueologia (Dez. de 1995 - Set. de 1996) Vítor Oliveira Jorge e Luiz Oosterbeek DOSSIER - FAMÍLIA, HERANÇA E FRAGMENTAÇÃO Nota de apresentação Práticas de sucessão em Portugal: panorama preliminar Brian Juan O'Neill Semeando entre as pedras: história e ecologia do minifúndio no Nordeste Algarvio Cristiana Bastos Não gostaria de ter todas as suas parcelas num só lugar? Estudo quantitativo da fragmentação da terra no Noroeste Jeffery W. Bentley Sucessão, herança e propriedade rural minhota: algumas questões e um caso sobre o impacto do Códifo Civil de 1867 Maria de Fátima da Silva Brandão V Á R I A Tribo - Centro Português dos saberes tradicionais para o desenvolvimento sustentável O Voo do Arado. Exposição sobre a agricultura e o espaºo rural no Museu Nacional de Etnologia Arqueologia portuguesa: algumas reflexões para um diagnóstico e uma estratégia Vítor Oliveira Jorge 1.ª Reunião do Comité Organizador da XXV Exposição do Conselho da Europa (Nov. de 1996) Susana Oliveira Jorge Conceptualização e Interpretação em Arqueologia: perspectivas actuais (mesa-redonda) Vinte e Cinco Anos de Arqueologia em Almada Jorge Manuel C. Raposo 3.º Congresso de Arqueologia Peninsular (UTAD, 1999) Arqueologia e Poesia: dois apontamentos sobre a obra poética de Vítor Oliveira Jorge: O Litograma poético Luís Adriano Carlos Um tempo original, um espaço regular Alexandra Abranches |